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APRESENTAÇÃO

Joseph-Benoît Suvée, Dibutades ou L'invention du dessin (1791-93)

Produto reconhecido da episteme ocidental cujas origens se fazem remontar à história do Egito Antigo e em especial aos seus importantes cultos funerários, sem esquecer a poderosa influência artística da civilização helénica, a arte do retrato pautou-se durante vários séculos por princípios de representação naturalista que veio a atribuir às linguagens da imagem a suposta vantagem de uma relação desejavelmente espontânea com a ordem do mundo.

 

Enquanto objetivação estética de reflexões e indagações identitárias aos diferentes níveis – individual, social, político ou cultural - , o retrato constitui-se como género artístico conhecedor de um notável florescimento no mundo ocidental a partir da Renascença, coincidindo com a aquisição de uma importante autoconsciência sócio-profissional por parte dos artistas e com a possibilidade do acesso à autoridade e à exemplaridade da imagem por parte de camadas cada vez mais amplas da população. Concebível segundo tipologias diversas e assumindo funções díspares, do desejo de autoconhecimento à propaganda política e ideológica, o retrato veio a revelar-se progressivamente transversal a múltiplas linguagens artísticas, desde a pintura e a escultura à medalhística, às artes decorativas, à fotografia ou às mais recentes produções digitais e intermediais, estendendo-se ainda à land art, à música e à literatura onde se tem avizinhado das escritas intimistas e (auto)biográficas com as quais se delineiam fronteiras nem sempre rigorosamente nítidas.

 

A ‘ocidentalidade’ do retrato, votado ao encarecimento dos sujeitos e à afirmação de autorias e de singularidades, tal como o prodigalizou a tradição quinhentista holandesa e italiana, não seria posta em causa senão a partir das primeiras décadas do último século, altura em que novas formulações da identidade dissociadas quer de uma iconografia de aparências e semelhanças físicas, quer de uma noção de individualidade univocamente definível tendem a afirmar-se.

 

A hipótese de identidades fragmentárias, descentradas, instáveis ou dissipativas produzida nos séculos XX e XXI atribuiu ao conceito uma latitude cada vez mais abrangente e movediça, conjugando componentes sociais, profissionais, psicológicos, étnicos, etários, sexuais, parcialmente formatados em função de expectativas e contingências históricas e contextuais. O retrato novecentista e em especial o retrato contemporâneo confrontam-nos de facto com propostas acrescidamente ambíguas e tipologicamente complexas que oferecem resistência a categorizações que julgaríamos consensuais. A imagem retratística passa a absorver com frequência uma lógica de mobilidade e de metamorfose, uma dimensão de mudez e de sombra que comprometem em defintivo a sua tradicional ‘autoridade’ e as suas tradicionais funções celebrativas e exemplares, reconfigurando-a como lugar de uma ‘procura’ que se exercita num limiar incerto entre o representável e o irrepresentável, o visível e o oculto, a forma e o informe. Inicialmente subordinado a um código ótico capaz de devolver o real como narrativa, o retrato descola-se agora progressivamente do suporte duplicativo e ‘consolador’ do reconhecimento, e em boa parte da fé nas imagens, rumo a gramáticas alternativas de construção e de organização figural ou mesmo a hipóteses ‘contrarretratísticas’ de resistência à figura, cada vez mais distantes de uma leitura teológica do corpo, cada vez menos subsumíveis num paradigma restritamente representacional.

OBJETIVOS

J.C Lavater, Physiognomische Fragmente zur Beförderung und der Menschenkenntnis Menschenliebe (1775-78)

O PROJETO RETRATO E REPRESENTAÇÃO (R&R) tem por propósito desenvolver a reflexão teórica e crítica sobre os conceitos e as práticas retratísticas no espaço ocidental, confrontando-a com os pressupostos da atitude representativa, reflexão academicamente ainda muito confinada às escolas de belas-artes e ao ensino da história e da filosofia da arte, dando atenção à produção de retratos oriunda quer da chamada cultura erudita quer da chamada cultura popular e expressa em diferentes media, materiais e linguagens – sem aqui esquecermos a literatura e a longa tradição do retrato poético –, com ênfase especial nas soluções continuamente inovadoras oferecidas pela contemporaneidade.

 

 Além de se procurarem definir possíveis pontos comuns nas ideias e nos processos retratísticos que permitam delinear uma cartografia desejavelmente mais aproximada do que se supõe seja uma ‘identidade contemporânea’, é ainda a própria (im)possibilidade do retrato como categoria que se pretenderá outrossim indagar: pode/deve ou não falar-se em retrato quando nos situamos já além ou aquém da mera ‘imitação do real’ e da necessidade mínima do reconhecimento?

 

A criação da presente página web, consagrada ao tema, vem preencher um propósito de investigação e de divulgação em torno da teoria e da prática retratística delineado pelo Grupo de Investigação em Identidade(s) e Intermedialidade(s) (Grupo2i) no âmbito da pesquisa enquadrada pelo Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho. Incluindo notícias, textos ensaísticos relevantes sobre ideias e práticas retratísticas (ou como tal entendíveis) nacionais e internacionais, em qualquer linguagem ou suporte, bem como galerias de imagens e de retratos literários e informação bibliográfica e webgráfica,  esta página propõe-se promover o interesse e o debate alargado, dentro e fora da comunidade académica, sobre um dos gestos mais familiares e sistemáticos do sujeito ocidental.

 

Atendendo não só à importância reconhecida dos públicos e das audiências no trabalho interpretativo mas ainda ao facto de o identitário, como hoje o entendemos, ser inevitavelmente relacional, particularmente oportuno julgamos ser interrogar o papel das intencionalidades dos públicos na construção do sentido retratístico: para além das eventuais intencionalidades dos artistas/retratistas, que liberdade (ou que autoridade) se reserva o observador de 'afetar-se' ou 'deixar-se afetar' — parafraseando Derrida — por não importa que imagem, a ponto de a constituir em retrato de outrem ou até em retrato próprio?

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