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FILOMENA SERRA

“SALAZAR, UM «RETRATO DO CHEFE» E O MITO DO «HOMEM NOVO»”

       (...)

 

       No retrato de Salazar, Eduardo Malta parece ter colocado toda a sua habilidade de pintor académico. Segundo o pintor, um bom retrato, aquele que mais lhe agradava realizar devia transfigurar a realidade, mais do que a registar tinha de agarrar o ethos espiritual do modelo. Era a defesa de um «realismo espiritual»,  que se aproximava das estéticas fascistas da época, mas era também uma visão moral que não excluía nessa «transfiguração da realidade» a sua manipulação. O retrato de Salazar parece mostrar o reforço do poder centrado naquele a quem foram entregues as finanças e realizara o «milagre» administrativo. A sua representação passava pela construção de uma imagem de poder, configurada no modelo clássico. Na realidade, Malta quis dar a grandeur do antigo retrato de corte e de aparato, numa adaptação à retórica estado-novista onde o Chefe devia inscrever a sua acção. Não é mais o retrato de luxo, como se verifica nos antigos retratos de corte, tendo no entanto com eles em comum os valores simbólicos e políticos de um país.

 

       O pintor conta como conseguiu realizar o desejo de pintar o chefe do governo, ao resolver segui-lo até à Serra do Caramulo, onde este se encontrava de férias, e de como um amigo, Guilherme Possolo conseguiu convencer Salazar que acabou por posar em onze sessões, de duas a três horas de pose.

 

Eduardo Malta, Retrato de António de Oliveira Salazar (1933)

       A capacidade expressiva da figura de Salazar centra-se no modo como trabalhou a figura e o fundo, assim como a iluminação do rosto. A figura recorta-se e eleva-se no cenário de uma paisagem verdadeira da Serra do Caramulo. Faz lembrar o antigo retrato do príncipe, adaptado agora aos tempos de uma outra retórica. A Nação está ali representada simbolicamente ou, mais do que isso. Além do país, da serra, do arvoredo, da igrejinha o que se avista ao longe é uma nação que se estende por todo um Império que não está lá mas que se adivinha. E à frente em primeiro plano aquele que guia esse «vasto» território espiritual.

 

       O próprio pintor afirmou, ao comentar a opção que tomou ao retratá-lo, que podia ter «sentado o Doutor Salazar numa cadeira mais ou menos luxuosa, ou tê-lo destacado sobre um reposteiro mais ou menos aveludado», ou, tê-lo colocado próximo de «um móvel dourado Luís XVI, Império, etc.», ou, ainda «sobre um fundo de cor harmoniosa, com sentido apenas decorativo, ou sobre uma paisagem imaginada (como faziam alguns pintores da Renascença)» o que o pintor já fizera. Mas, afirmava, não seria o Doutor Salazar». Por essa razão, colocou-o numa «paisagem positiva, paisagem real mas também espiritualíssima, cheia de poesia, paisagem-desdobramento da figura retratada».

 

       Logicamente, Malta sabia que a maior dificuldade era «exprimir o invisível pelo visível». E era essa veleidade que ele apostava captar.

 

       (…)

 

       No retrato de Salazar expressa-se um ideal e um exemplo a seguir. A figura foi pintada a meio-corpo, optando o pintor, pelas lembranças ingrescas do Retrato de Mr. Bertin, no modo como apresenta as mãos. Vemos a mão direita do ditador, pousada no colo, compridíssima e esguia, como uma espécie de garra, achando-se a outra oculta no bolso. Salazar olha-nos, os lábios finos e cerrados, possivelmente esboçando um fugaz sorriso. No rosto iluminado, o olhar é enigmático, mas sobretudo intensamente sinistro e, nessa verdade que o pintor captou, a figura parece viver em espírito. A figura transparece racionalidade como uma substância independente, separada da matéria que é o corpo. Salazar era assim apresentado como um Chefe omnipresente, um homem providencial que se propunha regenerar a Pátria.

 

       A figura cresce suspensa na paisagem. A expressão centra-se nos olhos que nos fixam parecendo afirmar que sabe para onde vai, decidido, eficaz, prestes a sacrificar-se e endurecido por um rigor espartano. Mas também parece como que dessexualizado. Retomando a metáfora da «invisibilidade» do filósofo José Gil, vemos aqui a paisagem como prolongamento do seu corpo, um «corpo-nação». Salazar lembra uma figura sem corpo. (...) Mas essa invisibilidade parece estender-se também aos indivíduos. Supõe-se que estão lá que contemplam o chefe que dirige e pensa por todos. A nação será assim um corpo de indivíduos, uma massa indistinta que se confunde com a paisagem física, espiritualizada, esvaziada de corpo, tal como o seu chefe, condenados a serem igualmente uma massa orgânica «invisível» composta de células que se queriam idênticas.

 

 

SERRA, Filomena (2013), “Salazar, um «Retrato do Chefe» e o mito do «Homem Novo» in Acciaiuoli, Margarida et al., Arte e Utopia, Lisboa, FCSH-UNL; CHAIA- UE; DINAMIA'CET-IUL do ISCT (pp. 257-262).

(Texto citado sem incluir notas)

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