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PAULA MORÃO

“RETRATO E AUTO-RETRATO - FRONTEIRA E LIMITES”

       É sabido que o eu que se representa se toma a si mesmo como objecto representado, como um outro de si - o que nas línguas neo-latinas encontra expressão nas formas distintas do pronome pessoal sujeito e objeto; ao falar de si, o sujeito intuitivamente empreende um processo de cisão em dois - aquele que observa e aquele que é observado. A auto-análise implica esta diferença que a imagem invertida no espelho simboliza, ao mesmo tempo que permite que o eu se veja como objeto que é possível estudar e interrogar, precedendo a um inventário de traços e componentes; assim, através da enumeração, da acumulação de pormenores, da amplificação ou da explicitação (operações mentais e figuras de pensamento), se vão levantando elementos que constituem uma descrição; subrepticiamente, esta contém já os argumentos de uma demonstração, do construir de uma tese que vai interpretando os elementos recolhidos e lhes atribui um sentido.

       Tenha-se presente que este processo de busca e de inventário necessariamente acarreta uma dimensão temporal e a interposição dos mecanismos da memória; com efeito, a recolecção dos elementos constitutivos do eu raras vezes se restringe ao momento presente, antes se estendendo, pela retrospecção, ao explicitar e complementar do agora por uma história passada. Através da memória, por associação e por selecção, o tempo ganha o peso intuitivo ou racional de uma evidência a que não se pode fugir. Por outro lado, à medida que os elementos inventariados se acumulam, vão tornar-se mais complexas as consequências desta temporalidade constitutiva, implicando uma escolha: como contar a história do eu? A partir do nascimento e por ordem cronológica dos eventos? Seleccionando apenas certos episódios ou factos a que se atribui maior relevo? Descrevendo lugares, personagens e sentimentos com detalhe, ou de modo sintético, como uma moldura? Seja qual for a opção, o mais importante é notar que necessariamente se estará a fazer composição de uma figura, com mais ou menos pormenorizado enquadramento.

 

 

MORÃO, Paula (2007),  “Retrato e Auto-Retrato - Fronteira e Limites” in Concerto das Artes, Kelly Basílio et al. (org.), Porto, Campo das Letras, (pp.188-189).

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