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NIKOLAI GÓGOL

O RETRATO

Molhou uma esponja, passou-a pelo quadro algumas vezes, limpou-o de quase todo o pó e sujidade acumulados ao longo dos anos, pendurou-o à sua frente na parede e admirou ainda mais a invulgar obra: o rosto quase ganhava vida, e os olhos olhavam-no de tal forma que acabou por se sobressaltar e, recuando, observou estupefacto: «Está a olhar, está a olhar com olhos humanos!» Veio-lhe de repente à cabeça uma história que ouvira há muito tempo do seu professor sobre um retrato do célebre Leonardo da Vinci, no qual o ilustre mestre trabalhara durante alguns anos, considerando-o contudo inacabado, e que, segundo Vasari, era com certeza a mais perfeita a acabado obra de arte. O mais perfeito nesse retrato eram os olhos, que maravilharam os seus contemporâneos: até mesmo as mais diminutas vénulas, quase imperceptíveis, não tinham sido ignoradas, mas acrescentadas à tela. Contudo, no retrato que se apresentava agora perante si havia algo estranho. Já não era arte, era algo que destruía até a harmonia do próprio retrato. Eram uns olhos animados, uns olhos humanos! Pareciam talhados de uma pessoa viva e inseridos ali. Aqui já não havia aquele prazer sublime que envolve a alma ao apreciar a obra de um pintor, por mais terrível que seja o tema retratado; havia ali uma sensação doentia, aflitiva. O que será? — interrogou-se involuntariamente o pintor. — Isto é, com certeza, uma natureza, uma natureza viva; de onde virá então este sentimento de estranheza desagradável? Ou será já a imitação escrava e literal da natureza uma transgressão semelhante a um grito estridente e desarmonioso? Será que se tomarmos um tema indiferente e insensivelmente, sem simpatizar particularmente com ele, ele se apresenta obrigatoriamente apenas na sua realidade terrível, sem ser iluminado por uma ideia inapreensível e oculta, naquela realidade que se revela se, desejando compreender uma pessoa bela, nos armarmos de bisturi, dissecarmos o seu interior e nos depararmos com uma pessoa abominável? Porque surge a simples e vil natureza nas mãos de um pintor banhada numa tal luz que não sentimos uma impressão vil; mas, pelo contrário, parece que nos delicia, e tudo em nossa volta nos parece correr e mover-se de forma mais calma e regular? E porque parece essa mesma natureza noutro pintor vil, imunda, embora este também lhe tenha sido fiel? Mas não, não há nela qualquer luz. É o mesmo que acontece que com uma paisagem natural: por mais magnífica que seja, falta-lhe algo se o sol não brilhar no céu.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Voltou a aproximar-se do retrato, para observar aqueles estranhos olhos, e foi com terror que percebeu que estes o fitavam realmente. Já não se tratava de uma cópia da natureza, havia neles uma estranha vida, como a que iluminaria o rosto de um cadáver que se erguesse do túmulo. Fosse o luar, trazendo consigo o devaneio dos sonhos e revestindo tudo de imagens transmutadas, tão opostas à do dia positivo, ou fosse outra a causa, o certo é que tinha medo, sabe-se lá porquê, de ficar sozinho naquela divisão. Afastou-se silencioso do retrato, voltou-se para o outro lado e esforçou-se por não olhar para ele, mas involuntariamente ia-o espreitando pelo canto do olho. Por fim sentiu mais medo ainda de andar pelo estúdio, e ia espreitando medrosamente por cima do ombro, parecendo-lhe que alguém o seguia. Nunca fora cobarde; mas tanto a sua imaginação como os seus nervos eram sensíveis, e nessa noite ele próprio não conseguia explicar esse sentimento involuntário de ansiedade. Sentou-se a um cantinho, mas até dali lhe parecia que alguém podia a qualquer instante espreitar-lhe a cara por cima do ombro. Mesmo os roncos de Nikita, que soavam no vestíbulo, não conseguiam expulsar esta ansiedade. Por fim ergueu-se a medo do seu lugar, sem erguer o olhar, dirigiu-se para trás do biombo via o quarto iluminado pelo luar e, mesmo em frente, o retrato pendurado na parede. Os olhos fitavam-no ainda mais medonhos, com ainda mais intensidade, e pareciam não querer olhar para mais nada senão ele. Cheio de um sentimento opressivo, decidiu-se a levantar, pegou num lençol e, aproximando-se do retrato, cobriu-o por completo.

 

       Depois de ter feito isto, deitou-se mais calmo, e pôs-se a pensar na pobreza e no miserável destino do pintor, no caminho espinhoso que lhe estava reservado no mundo; e, entretanto, olhou involuntariamente por uma frincha do biombo para o retrato coberto pelo lençol. O luar intensificava a brancura do lençol, e pareceu-lhe que já via aqueles olhos terríveis a faiscar através do tecido. Olhou assustado com mais atenção, como desejando convencer-se de que era tudo um absurdo. Mas na realidade acabou por ver... viu, viu claramente já lá não estava... o retrato estava completamente destapado e olhava-o a direito, sem se deter no que estava em volta, olhava simplesmente para dentro de si... Sentiu um baque no coração. Viu o velho mover-se e de repente apoiar-se à moldura com ambas as mãos. Depois soergueu-se e, pondo de fora ambas as pernas, saltou da moldura... Pela frincha do biombo já só se via a moldura vazia. Ouviu-se pelo quarto o som de passos que se iam aproximando cada vez mais do biombo. O coração do pobre pintor saltava-lhe do peito. Com a respiração suspensa de medo, esperava que a qualquer momento o velho o espreitasse por detrás do biombo. E lá estava ele a espreitar para trás do biombo, com o mesmo rosto cor de bronze, movendo os seus grandes olhos. Tchartkov tentou gritar, mas sentiu que lhe fugia a voz; tentou mover-se, esboçar um movimento, mas os membros não lhe obedeciam. Com a boca aberta e respirando a custo, olhava para o assustador espectro muito alto, num amplo traje asiático, à espera do que ele iria fazer.

 

 

GÓGOL, Nikolai (2008), O Retrato [1842], Vila Nova de Famalicão, Quasi Edições (pp. 20-24).

Leonardo da Vinci, Mona Lisa (fragmento) (1503-1506)

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