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ROLAND BARTHES

A CÂMARA CLARA - NOTAS SOBRE A FOTOGRAFIA

O ‹‹ar››

 

       Todavia, quando se trata de uma pessoa - e já não de uma coisa - a evidência da Fotografia tem todo um outro sentido. Ver fotografados uma garrafa, um ramo de íris, uma galinha, um palácio, apenas compromete a realidade. Mas um corpo, um rosto e, mais ainda, tantas vezes os de um ser amado? Uma vez que a Fotografia (é esse o seu noema) autentifica a existência de tal pessoa, eu quero encontrá-la por inteiro, isto é, na essência, ‹‹tal como ela própria é››, para além de uma mera semelhança, civil ou hereditária. Aqui, a crueza da Foto torna-se mais dolorosa, porque ela só pode responder ao meu desejo louco através de qualquer coisa de indizível: evidente (é a lei da Fotografia) e, contudo, improvável (não posso prová-lo). Esse qualquer coisa é o ar.

 

       O ar de um rosto é indecomponível (a partir do momento em que posso decompor, eu provo ou recuso; em suma, duvido, afasto-me da Fotografia que, por natureza, é toda evidência: a evidência é aquilo que não quer ser decomposto). O ar não é um dado esquemático, intelectual, como o é uma silhueta. O ar também não é uma simples analogia – por muito avançada que seja - como o é a «semelhança». Não, o ar é essa coisa exorbitante que leva do corpo à alma - animula, pequena alma individual, para uns boa, para outros má. Assim, percorria eu as fotos da minha mãe seguindo um caminho iniciático que me conduzia a este grito, fim de toda a linguagem: «É isto! » Primeiro, algumas fotos indignas, que só me davam dela a sua identidade mais grosseira, civil; depois fotos, inúmeras fotos, nas quais lia a sua ‹‹expressão individual» (fotos analógicas, ‹‹semelhantes»); por fim, a Fotografia do Jardim de Inverno, onde faço muito mais do que reconhecê-la (palavra demasiado grosseira): em que a volto a encontrar. Despertar brusco, fora da ‹‹semelhança››, satori em que as palavras falham, evidência rara, talvez única do ‹‹Assim, sim, assim e mais nada››.

 

       O ar (assim chamo, à falta de melhor, à expressão da verdade) é como o suplemento impossível da identidade, isso que é dado gratuitamente, despojado de toda a ‹‹importância››: o ar exprime o sujeito, na medida em que ele não atribui importância a si mesmo. Nesta foto de verdade, o ser que eu amo, que amei, não está separado de si mesmo: finalmente, ele coincide. E, mistério, essa coincidência é como uma metamorfose. Todas as fotos da minha mãe que eu passara em revista eram um pouco como máscaras; na última, bruscamente a máscara desaparecia. Ficava uma alma, sem idade mas não fora do tempo, uma vez que esse ar era aquele que eu via, consubstancial ao seu rosto, em cada dia da sua longa vida.

 

       Talvez o ar seja, definitivamente, qualquer coisa de moral, trazendo misteriosamente para o rosto o reflexo de um valor da vida? Avedon fotografou o dirigente do Labor americano, Philip Randolph (que morreu na altura em que escrevo estas linhas); na foto, eu leio um ar de «bondade» (nenhum instinto de poder, é certo). O ar é, assim, a sombra luminosa que acompanha o corpo; se a foto não consegue mostrar esse ar, então o corpo vai sem sombra, e, uma vez cortada essa sombra, como no Mito da Mulher sem Sombra, nada mais resta do que um corpo estéril. É através desse umbigo subtil que o fotógrafo dá vida. Se ele não sabe, ou por falta de talento ou por falta de oportunidade, dar à alma transparente a sua sombra clara, o sujeito morre para sempre. Fui fotografado milhares de vezes; mas se todas essas fotografias «falharam›› o meu ar (e talvez, afinal, eu não o tenha), a minha efígie perpetuará (o tempo, de resto limitado, que dura o papel) a minha identidade, não o meu valor. Aplicado a quem se ama, este risco é dilacerante: posso ficar privado para sempre da ‹‹imagem verdadeira››. Uma vez que nem Nadar nem Avedon fotografaram a minha mãe, a sobrevivência desta fotografia ficou a dever-se ao acaso de ter sido tirada por um fotógrafo de província que, mediador indiferente, também ele posteriormente morto, não sabia que aquilo que fixava era a verdade – a verdade para mim.

 

O Olhar

 

       Ao pretender obrigar-me a comentar as fotos de uma reportagem sobre as ‹‹urgências››, vou dissecando as notas que tomo. O quê, nada a dizer da morte, do suicídio, do ferimento, do acidente? Não, nada a dizer destas fotos em que vejo batas brancas, macas, corpos estendidos no chão, bocados de vidro, etc. Ah, se houvesse apenas um olhar, o olhar de um sujeito, se alguém, na fotografia, me olhasse! Porque a Fotografia tem este poder - que tem vindo a perder, ao considerar-se normalmente arcai ca a pose frontal - de me olhar directamente nos olhos (eis, de resto, uma nova diferença: no filme, ninguém me olha nunca; é proibido - pela Ficção).

 

       O olhar fotográfico tem algo de paradoxal que se encontra, por vezes, na vida: outro dia, no café, um adolescente só percorria com os olhos a sala; por vezes, o seu olhar pousava em mim; tinha, então, a certeza de que me olhava sem, no entanto, ter a certeza de que me via; distorção inconcebível: como é possível olhar sem ver? Dir-se-ia que a Fotografia separa a atenção da percepção e liberta apenas a primeira, sendo, no entanto, impossível sem a segunda; é, coisa aberrante, uma noética sem noema, um acto de pensamento sem pensamento, uma mira sem alvo. E, contudo, é este movimento escandaloso que produz a mais rara qualidade de um ar. O paradoxo é este: como é possível ter um ar inteligente sem pensar em nada de inteligente, olhando para aquele pedaço de baquelite preta? É que o olhar, fazendo a economia da visão, parece retido por qualquer coisa de interior. Este rapazinho pobre, que pega num cão recém-nascido e inclina a face para ele (Kertész, 1928), olha a objectiva com os seus olhos tristes, ciumentos, medrosos: que ensimesmamento digno de dó, lancinante! De facto, ele não olha nada; ele retém dentro de si o seu amor e o seu medo. É isso o Olhar.

 

       Ora, o olhar se insiste (e, com maioria de razão, se ele se demora, atravessa, com a fotografia, o Tempo) é sempre virtualmente louco: ele é simultaneamente efeito de verdade e efeito de loucura. Em 1881, animados de um belo espírito científico e procedendo a uma investigação sobre a fisionomia dos doentes mentais, Galton e Mohamed publicaram imagens de rostos. Concluiu-se, evidentemente, que a doença não podia ler-se neles. Mas como todos esses doentes me olham ainda, cerca de cem anos mais tarde, eu tenho a opinião contrária: quem quer que olhe a direito nos olhos é louco.

 

       Este seria o «destino›› da Fotografia: fazendo-me crer (isto acontece uma vez em quantas?) que encontrei a «verdadeira fotografia total››, ela realiza a confusão inaudita da realidade («Isto foi») e da verdade («É isto!»). Passa a ser simultaneamente verificativa e exclamativa; leva a efígie a esse ponto louco em que o afecto (o amor, a compaixão, o luto, o entusiasmo, o desejo) é garante do ser. Aproxima-se, então, efectivamente, da loucura, junta-se à ‹‹verdade louca››.

 

 

BARTHES, Roland (2008), A Câmara Clara - Notas sobre a fotografia, Lisboa, Edições 70, (pp. 118-125).

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