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ANTÓNIO MEGA FERREIRA

“REMBRANDT AO ESPELHO”

       Bruma, bruma e poeira, bruma feita de poeira coada pela luz que entra pela janela do lado esquerdo, à sua direita no quadro, se pudesse voltar a cabeça, mas não, há muito que os músculos do poescoço se fecharam como punhos e qualquer torção é uma dor inexplicável e feroz, menos que uma adaga (imaginando que alguma vez ele tivesse experimentado o aço cortante de uma lâmina no pescoço, há, a lâmina com que o anjo empurra a mão de Abraão sobre o pescoço de Isaac), mais que um prego ou, melhor, um estilete de ponta afiada, uma dor que o paralisa, uma dor que apenas o autoriza a imaginar que a luz chega daquela janela, que mandou rasgar quarenta anos antes, quando quis mostrar-se no ato de pintar, mas discretamente, rompendo com a convenção do género, fazendo-se figurar à distância, meio imerso na sombra, enquanto a luz inside sobre o cavalete de que apenas descobrimos o reverso. Engana-se (ou engana-se a ficção, por ele): desta vez, nesta casa rústica aonde veio parar, perseguido pelos credores e exilado pela sociedade antipática da sua Hendrickje com Titos, o único filho que sempre lhe subejou, não teve de mandar abrir nenhuma janela (mesmo que mandasse, quem estaria ali para lhe obedecer?), pinta com a luz que tem (fria, frágil, filtrada) e com a que inventa (pastosa, escura, avinhada), porque tantas e tantas vezes se retratou que quase sabe de cor os efeitos da sombra sobre o rosto, os prodígios do pincel, curto e endurecido, sobre a pele, aquela sua maneira singular de contar a decrepitude, a inscrição do tempo na matéria mutável de que se faz o humano. O rosto não é uma impressão geral, a não ser para os nossos olhos exaustos de imagens, três séculos e meio depois: o rosto é lábios carnudos semi-ocultados pela penugem de um bigode ruivo, é nariz bulboso, é olhos implacáveis fixos no observador [sic] E a soma dessas partes é que faz o conjunto. Mas esse conjunto destaca-se como qualquer coisa de inédito, qualquer coisa de ainda não dito, de variação quase impercetível em relação a um tema antigo, que traz em carteira desde os vinte anos de idade: o seu rosto.

      E é isso que continua a mover-lhe a mão: aos sessenta e três anos, só, arruinado, consumido pelos processos e pelas vilanias de quem viveu à custa dele, desterrador de Amesterdão como infame, desapossado, ainda mal secas as tintas, de qualquer tela que

Rembrandt, Autorretrato com a idade de 34 anos (1640)

     lhe saia das mãos, para pagar as dívidas ou expiar o ressentimento alheio, prisioneiro do seu próprio mau-génio e do seu génio bom, o que o faz pintar, Rembrandt van Rijn interroga o seu rosto, não para lhe descobrir a alma (outros, muito depois dele, acharão que é isso que ele procura), mas para lhe perscrutar a existência: de onde veio esta carne, como se comporta esta massa, como pintá-la? Numa trancendência, nenhuma dúvida metafísica, nenhuma esperança na eternidade, e, portanto, nenhum sobressalto da razão: Rembrandt procura, procura sempre, apenas porque, do corpo, foi sempre o rosto que o fez tomar-se como modelo. Cem vezes — ou mais — desde que se conhece. Tantas, que não é lícito pensar que se aproveita apenas porque o modelo lhe fica mais barato, mais à mão. O tema não o cansa, não se lhe esgota no olhar e nas mãos. A sua pintura é textura, matéria constantemente reencenada, persistentemente modelada pela sua obsessão. A pele não é lisa, ao contrário do que pensa Vermeer, que por este tempo se preocupa com tipos, objetos e circunstâncias maisdo que com a imponderabilidade do humano, desafio constante à arte de ver, ao ofício do pintor.

 

 

FERREIRA, António Mega (2012), “Rembrant ao espelho”, EGOÍSTA 50 | ARTISTAS.

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