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JACQUES DERRIDA

MEMÓRIAS DE CEGO: O AUTO-RETRATO E OUTRAS RUÍNAS

       Se aquilo a que se chama auto-retrato depende do facto de se lhe chamar «auto-retrato», um acto de nomeação deveria, a justo título, permitir-me chamar auto-retrato não importa o quê, não somente não importa que desenho («retrato» ou não), mas tudo quanto me chega e de que eu posso afectar-me ou deixar-me afectar. Como Ninguém, dirá Ulisses no momento de cegar Polifemo. Antes mesmo de se tentar uma história pensada do retrato, antes mesmo de se diagnosticar o seu declínio ou a sua ruína («o retrato periclita» dizia Valéry), dever-se-á sempre dizer do auto-retrato: «se acaso o houver...» [«s’il y en avait...»], «se acaso restar» [«s’il en restait»], É como uma ruína que não vem a seguir à obra mas que queda produzida, desde a origem, pela adveniência [avènement] e pela estrutura da obra. Na origem foi a ruína. Na origem acontece à ruína, ela é o que primeiramente lhe acontece, à origem. Sem promessa de restauração. Esta dimensão de simulacro ruinoso nunca ameaçou, antes pelo contrário, o surgimento de uma obra. Simplesmente é preciso saber [«il faut savoir»], e portanto há que ver bem issoil faut bien voir ça»], que a ficção performativa, que empenha o espectador na assinatura da obra, não dá a ver senão através do enceguecimento que ela produz como sua verdade. Como entrevisão de um ciúme. Mesmo que tivéssemos a certeza de que Fantin-Latour se desenha a si mesmo em vias desenhar, jamais se saberá, ao observar unicamente a obra, se ele se mostra em vias de se desenhar ou de desenhar outra coisa — ou ainda a si mesmo como outro.

 

(...)

 

       A partir do momento em que se considera, fascinado, preso à imagem, mas desaparecendo aos seus prórpios olhos no abismo, o movimento pelo qual um desenhador tenta desesperadamente recuperar-se é já, mesmo no seu presente, um acto de memória. Baudelaire sugeria-o em L’art mnémonique: o operar [mise en œuvre] da memória não está ao serviço do desenho; tão-pouco também o conduz, como o seu dono ou a sua morte — é a própria operação do desenho, e justamente a sua mise en œuvre. O fracasso em recapturar a presença do olhar fora do abismo, onde ele mergulha, não é um acidente ou uma fraqueza, antes figura a própria chance da obra, o espectro do invisível que ela dá a ver sem jamais o apresentar. Do mesmo modo que a memória não restaura aqui um presente passado, também a ruína do rosto — e do rosto fitado ou desfigurado [dévisagé] no desenho — não significa o envelhecimento, a usura, a decomposição antecipada ou esta mordedura do tempo de que frequentemente um retrato trai a apreensão. A ruína não sobrevém como um acidente a ummonumento ontem intacto. No começo há a ruína. Ruína é o que acontece aqui à imagem desde o primeiro olhar. Ruína é o auto-retrato, este rosto fitado ou desfigurado como memória de si, o que resta ou retorna como um espectro desde que, ao primeiro olhar sobre si lançado, uma figuração se eclipsa.

 

 

DERRIDA, Jacques (2010), Memórias de Cego: O auto-retrato e outras ruínas, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian.

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