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EUNICE RIBEIRO

“POÉTICAS DO RETRATO - O DESGASTE DAS IMAGENS”

        É no domínio do auto-retrato, formato particularmente pregnante no século XX, que a fuga da figura se torna duplamente significativa: como sintoma e como resultado (ou não-resultado) de uma indagação que é simultaneamente auto-referencial e metadiscursiva.

 

        A utilização do espelho, a metáfora convencional da pintura ora como devolução ora como revelação do corpo-próprio, entre o ícone absoluto e o símbolo epifânico, assume nos auto-retratos contemporâneos pragmáticas dissonantes, e particularmente eloquentes no sentido de um distanciamento da função de restituição da imagem entendida como um crédito de visibilidade. Incluído como “pintura” dentro do espaço do quadro (na esteira do experimentum crucis a que alude Eco), o espelho deixa de ser simples prótese perceptiva, prolongando o alcance do orgão visual, para transformar-se na sua própria caricatura, no fantasma de si próprio. Quer se trate de espelhos deformantes ou de espelhos planos, o espelho pintado é agora sinal de um “exercício contrafactual” com funções directa ou mediatamente alucinatórias.

 

       No espelho convexo de Escher (Mão com esfera reflectora, litografia, 1935) que produz o retrato extensivamente ou intrusivamente como simultopia, permitindo a visão (impossível) de mundos simultâneos (recorrendo à técnica da reflexão esférica já utilizada por van Eyck, por exemplo, no famoso Retrato dos Arnolfini, ou por Parmigianino em Auto-retrato num espelho convexo, 1523/24); ou no espelho magritteano que interdita o retrato como reprodução do rosto (A Reprodução interdita – Retrato de Edward James, 1937); ou no speculum pro facies de Lichenstein (Auto-retrato, 1978) - o retrato segue um trajecto anamórfico que culmina num furto, numa deserção: o que a cena do quadro emoldura não é uma narrativa identitária mas um ensaio de codificação da imagem que não chega a atingir o nível discursivo da significação estabilizada. O espelho (e o quadro que o contém) deixa de ser o “interruptor” do retrato (parafrasendo Paulo Pereira), mas apenas o espaço “não barrado” de um processo de produção de um “retrato” que não passará necessariamente pela figura (enquanto objectivação formal). “Espelho”, lê-se em Água viva de Clarice Lispector, “ é o espaço mais fundo que existe”, “e é preciso ficar à espreita dias e noites, em jejum de si mesmo, para poder captar e surpreender a sucessão de escuridões que há dentro dele.” Auto-retratar-se significa ser o espelho, muito mais do que ver-se nele.

 

       A imagem retratística, como estrutura abissal pressupondo um sistema de espelhamentos potencialmente interminável, aparece frequentemente concretizada pelo processo do auto-retrato duplo ou triplo, de forte repercussão na história moderna do retrato que em parte recupera uma tradição remota de jogos de espelhos e teatros catóptricos. Utilizando-se um suporte único, a imagem é sucessivamente duplicada segundo uma lógica de encaixe ou de abyme que coloca como charada a questão dos “originais”, pondo em evidência logros e riscos da “cópia” e da “exactidão” do copiar. A promessa identitária do retrato contrasta ironicamente com  a ficcionalização complexa da imagem que encena ciclicamente a alienação do sujeito relativamente a si próprio (apontem-se: Jacques Henri Lartigue, Auto-retrato, Rouzat, 1923; Magritte, Auto-retrato Duplo, 1936; Norman Rockwell, 1960 -Mad Art:; Erik Boulatov, Auto-retrato, 1968; Gilad Benari, a Portrait of She). A função de espelho é a do trou deleuziano, lugar de deriva e de ilocalização do retrato, do seu devir-imperceptível.

 

 

RIBEIRO, Eunice (2008), “Poéticas do Retrato – o desgaste das imagens”, Diacrítica, 22/3 (pp. 265-322).

Versão digital em: http://ceh.ilch.uminho.pt/diacritica_pdf_22_3.pdf

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