LUÍS DE CAMÕES
[RETRATO, VÓS NÃO SOIS MEU]
Glosa a mote
Retrato, vós não sois meu;
Retrataram-vos mui mal;
Que, a serdes meu natural,
Fôreis mofino como eu.
Inda que em vós a arte vença
O que o natural tem dado,
Não fostes bem retratado,
Que há em vós mais diferença
Que do vivo ao pintado.
Se o lugar se considera
Do alto estado que vos deu
A sorte, que eu mais quisera;
Se é que eu sou quem de antes era,
Retrato, vós não sois meu.
Vós na vossa glória posto,
Eu na minha sepultura;
Vós com bens, eu com desgosto;
Pareceis-vos ao meu rosto,
E não já à minha ventura.
E, pois nela e vós erraram
O que em mim é principal,
Muito em ambos se enganaram.
Se por mim vos retrataram,
Retrataram-vos mui mal.
Mas se esse rosto fingido
Quisereis representar,
E houveram por bom partido
Dar-vos a alma do sentido
Pera a glória do lugar,
Víreis, posto nessa alteza,
Que em vós não há cousa igual;
E que nem a maior mal
Podeis vir, nem por baixeza,
Que a serdes meu natural.
Fernão Gomes, Luís de Camões (cópia do séc. XIX)
Por isso não confesseis
Serdes meu, que é desatino
Com que o lugar perdereis;
Se conservar-vos quereis,
Blasonai que sois divino;
Que, se nesta ocasião
Conhecessem que éreis meu,
Por meu vos deram de mão,
. . . . . . . . .
Fôreis mofino, como eu.
CAMÕES, Luís Vaz de (1984), [Retrato, vós não sois meu] in Obras Completas - Vol. III Lírica, Lisboa, Círculo de Leitores, (p. 133).