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HERBERTO HELDER

“RETRATÍSSIMO OU NARRAÇÃO DE UM HOMEM DEPOIS DE MAIO”

Retratoblíquo sentado.
Retratimensamente de/lado, no/acto

conceptual de/ver quantos vivos quantos

dando folhas sobre os mortos de topázio.

Mãosagora, veloz rosto, visão pura.

Esquerdo ao/lado, fogo

junto à cabeça. E mais fogo à/direita por/detrás

da mão estreita pegando no ar
como num livro. Julgo ser eu.
Eu às/portas do sono, e não

se sabe se venho do sono, oh nem se

me empolgo numa ilusão
sombria. Eu oh nem se
me entro para um sonho extenuante.

Sono empurrado de inspiração

terrena.

 

Retratobliquamente livre e martelado

em sua leveza.
Com algum espinho meio/visível perto

da cabeça. Como se a cabeça

fosse uma rosa venenosa, ou coisa

inclinada e dolorosa. Para ser defendida

ou ferida no/acto

da exaltação. Retrato frio. Num grau

de ausência, num degrau de alucinação.

Frio nas fronteiras do concreto, e  ardente

perto perto,

Por/cima , nuvens de cinza revoltada,

Em/baixo, fruta aberta,

Fundos de paisagem veemente e incompleta.

 

Imaginativa, a roupa; e as pregas, precipitadas.

Que cheiraria a suor um/pouco,
e a tabaco. Por/cima

do colarinho vago o caloroso

sorriso de ironia é quasexacto. Boquim-

pura contínua - mente/regenerada

pelo amor e, pelo amor, tornada

soturna e abrupta.
Morte ao/meio como alta
alta desarmonia, Que os poderes oh confundia.

 

Ou talvez toda a força se movimente

para o centro do retrato,

‘E a morte se urda do próprio modo como

a carne alimenta o silêncio compacto

no/meio do retrato.

Talvez este ser se abisme em seu núcleo
central. E toda a figura se levante, na arquitectura

da cadeira, por virtude desse nó

ou núcleo trágico. Assim como uma pura

concepção em/torno de um delírio

vingativo e transacto.

 

Qualquer coisa no retrato ressalta

do espírito de um homem que foi assassinado.

Há um punhal implícito.

Sangue desdobrado. A cadeira é alta e existe dentro do fogo.

O sexo suposto está masculino. O livro

entreposto à vida e à visão

é um livro feroz e ao mesmo tempo destruído

pela beleza.

Este homem não fala, porque se fez pedra extrema

fechada.
Sua idade ouve-se a si/mesma, infiltrada

até ao terror.

 

Não tem amor senão do amor.

É um homem devastado pelo pensamento da alegria.

Deus vive nele um tempo obscuro

de esquecimento. Este homem mora

nas coisas miúdas transpostas,

comparadas, alvitradas, justapostas.

Vive em/arco.

Pensa em/espírito de fogueira.

Tem toda a mão queimada até ao silêncio

atroz. Rodearam-lhe a voz.

Contudo, seu ser é destinado à alegria verdadeira.

 

Se adormecesse, deveria ser acordado,

Ou deveria recostar-se na cadeira,ca -  ir

em sua/própria fantasia
calma. Não há nele vida celeste,

nem malícia de alma

Há uma assimetria insondável, um destino ou

desatino casto e demorado.
Por isso é que está de/lado.
Existe, ao/centro, uma força assombrosa.

Nele tudo ousa.
 

Vai morrer imensamente (ass)assinado

 

 

HELDER, Herberto (1961-62), "Retratíssimo ou Narração de um Homem Depois de Maio", in Lugar, Lisboa (ver Ofício Cantante - Poesia Completa, Lisboa, Assírio & Alvim, 2009).

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