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BERNARDO PINTO DE ALMEIDA

“MÁRIO CESARINY”

       A nossa civilização corre o risco de ficar submersa como a Grécia (Atenas) sob a extensão da democracia, de cair inteiramente nas mãos dos escravos, ou então de ficar como Roma, não nas mãos de imperadores filhos do acaso e da decadência, mas de grupos financeiros sem pátria, sem lar na inteligência, sem escrúpulos intelectuais e sem causa em Deus. O único antídoto para isto é uma lenta aristocratização. E pela arte que, supremamente, essa aristocratização pode ser feita.

- Fernando Pessoa

 

Um Príncipe.

 

       Diz-se um Príncipe aquele que transporta em si, seja na glória seja no mais devastado dos redutos, os signos de uma soberania. Essa soberania consiste no poder inviolável de descerrar um espaço, com tanto de interior quanto de exterior, em que é possível reconhecer a afirmação definitiva de uma liberdade: liberdade de palavra, liberdade de acção, liberdade de ser em puro movimento. Mesmo numa masmorra um príncipe permanece livre, porque o seu poder é o dos símbolos e, por isso, só o esquecimento poderia torná-lo mortal. Essa é a forma do seu compromisso com o mundo e, também, aquilo que dele o mundo espera.

 

       Um príncipe é, ao mesmo tempo, aquele que não tem que assumir o encargo e o peso da realeza e do mando, habitando ainda assim na sua esfera, e dela herdando os requisitos da sua absoluta distinção. Um príncipe é um rei que ainda não foi marcado do peso do mando e que, como tal, percorre o mundo como se este fosse por inteiro a sua casa, já que é sua também a única liberdade que o poder confere, sem para isso precisar de o exercer. Associadas à mitologia do príncipe temos tanto a figura da mais alta nobreza como a do boémio, a do guerreiro e a daquele que prescindiu, podendo embora tê-lo usufruído, desse estatuto e das suas prebendas.

 

       Assim, príncipe não é só aquele que herda, do sangue ou da linhagem, essa

Mário Cesariny, Bernardo Pinto de Almeida

marca da mais alta soberania. É-o também, talvez mais do que qualquer outro, aquele que a ela ascende em si mesmo. Há uma célebre carta, datada de 1629, escrita por Constantin Huygens (1596-1687), secretário particular do Príncipe Frederik Hendrik de Orange, em que este nobre flamengo, dirigindo-se ao seu senhor a propósito do jovem Rembrandt, que acabara de encontrar, escreveu:

 

       “Em Triarij, propositadamente destaquei um nobre par de jovens de Leiden. Se dissesse que os dois eram por si sós iguais àqueles prodígios que apontei entre tantos grandes mortais, ainda assim estaria a julgar este algo abaixo daquilo que estes dois mereceriam. [...] Quando considero a parentela de ambos, penso que nenhum argumento mais forte poderá ser aduzido contra a ideia de a nobreza ser uma questão de sangue...

 

       Que este curioso escrito, sobre o qual passaram já quase quatro séculos, sirva aqui para acentuar a natureza dessa nobreza que não vem das honrarias nem do sangue, mas antes de uma força interior que raros possuem mas que se expande à sua volta, e que como tal se impõe em sua soberania.”

 

       Pedem-me um retrato de Mário Cesariny. E dele só saberei dizer que foi um príncipe. Um dos muito raros que cruzei. Assim o vejo e o recordo, caminhando livre no mundo, ora pobre, ora perseguido, mas sempre livre em si mesmo e, como tal, capaz de irradiar à sua volta essa marca distintiva que se sente diante da verdadeira soberania.

 

E dele mais não sei dizer.

 

 

ALMEIDA, Bernardo Pinto de (2007), “Mário Cesariny” in Artistas Retratam Escritores que Retratam Artistas, Porto, Modo de Ler Editores e Livreiros Limitada (pp. 26-27).

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