JOSÉ GIL
«SEM TÍTULO» - ESCRITOS SOBRE ARTE E ARTISTAS
O Retrato
O rosto constitui uma zona corporal privilegiada de comunicação e de expressão. Ora, o que aí se exprime mostra-se dissimulando-se: porque não é diretamente visível, o interior traduz-se no exterior da cara em gestos, traços, movimentos, olhares. Que também traem o que se quis ‘dizer’: o interior esgueira-se, o que faz com que o exterior o exprima necessariamente em equívoco – mesmo quando a expressão é parcialmente fiel ao expresso. O sorriso terno que vemos naqueles lábios é sempre mais ou menos, e outra coisa ainda, diferente da emoção interior que o fez nascer.
Então o rosto manifesta, de modo eminente, o esgueire, a esquiva do interior à expressão directa. Ora, em certo sentido, a morte como acontecimento inicia o movimento contrário a essa esquiva do interior.
O esquive mostra a impossibilidade da presença – ou que a presença só pode ser expressão. A morte inverte o processo do esgueire-equívoco, levando-o às suas últimas consequências: retirando ao corpo a presença, não deixa mais nenhuma possibilidade de esgueire e de expressão. No entanto, liberta-se assim a eventualidade de uma percepção directa do interior: da alma, do espírito. (...)
Ter-se-ia aqui uma primeira explicação do laço que une o retrato à morte. tal como esta, aquele expõe à vista o interior sem equívocos; diferentemente da morte, o retrato apresenta o interior como ele é, mas através dessas mesmas mediações (traços, expressões) que no rosto natural o dissimulam. (p. 22)
A Auto-representação
Ver é ser visto. Olhar é ser olhado. A reflexividade especular da visão prolonga no mundo a reversibilidade sensível do corpo – que ao ver-se e tocar-se é visto e tocado –, como se o olhar que abre a nossa pele ao olhar dos outros a transportasse assim para as coisas e as recobrisse como uma pele-espelho que nos reflectisse. (...)
Poder-se-á imaginar uma visão não especular, um ver que não seja visto? A auto-representação está mesmo potencialmente implícita em toda a visão?
Imaginemos um mundo feito apenas de voyeurs. Em vez de ver uma cena secreta – um desvelamento íntimo, um desnudar-se –, o voyeur descobriria através do buraco da fechadura um outro voyeur com o olho numa outra fechadura; o qual estaria a ver um terceiro, também à espreita, colado a uma porta, e assim de seguida, indefinidamente. Um estrangeiro que penetrasse neste mundo e tivesse, para ver, que esconder-se, e que só visse voyeurs a verem outros voyeurs, seria rapidamente assaltado por uma ideia: que ele próprio estaria a ser visto, alvo de qualquer olhar escondido que o visse e se não mostrasse. O que prova, paradoxalmente, a reversibilidade da visão: a cena que vê o voyeur reflui sobre o seu próprio espaço, abrindo-o.
Se a impossibilidade de conceber um mundo de voyeurs revela como no seio do olhar habita o olhar do outro, a pulsão voyeurista – ver sem ser visto – manifesta, no entanto, um desejo irreprimível: o de mudar de corpo, abandonando o seu na sombra para se apropriar do outro, exposto à luz. Porque o voyeur, ao quebrar a reflexividade da visão, oblitera para outrem e para si, o seu próprio corpo. O que ele vê às escondidas, um outro corpo que julga não ser visto, que suspendeu também o circuito do olhar, vem ocupar o lugar do seu corpo apagado. A intensa excitação erótica que lhe provoca esta transgressão da norma que regula a troca pública de olhares vem daí: subterraneamente, apropriando-se do corpo iluminado do outro, enxertando-o em si mesmo, ele reata o circuito da reflexividade do olhar. Circuito, agora, sob seu controlo: aquele corpo, que é o seu tornado outro, em contacto (visual) e a distância, entrega-se inteiramente à manipulação táctil e mágica do seu olhar unívoco.
Assim o voyeurista transforma-se em exibicionista (...). O que o voyeur está a ver e a mostrar é a sua nudez exibida agora a um olhar que ele desejaria totalmente desinibido, desconstrangido, escapado à lei do olhar do outro. Olhar maximamente subjectivado, e contudo transferido para o corpo do outro, na fronteira última da subjectivação, prestes a anonimizar-se a partir do reflexo da pele do outro. Ali, na cena que espreito, o corpo sob a luz irradia um espaço público puro, utópico, liberto de uma perspectiva limitada, completamente aberto, exposto à multiplicidade infinita dos olhares possíveis. É esta multiplicidade que o olhar do voyeur percorre vertiginosamente: ser todos os olhares, ser o único olhar total de todos os olhares, é possuir magicamente aquele corpo só para mim. o máximo da subjectivação confunde-se com a dessubjectivação máxima de um devir-outro do olhar. (pp. 47-8)
(...)
De certo modo, pois, toda a pintura é um exercício de voyeurismo-exibicionismo, como toda a representação um exemplo alargado de auto-representação. Porque o corpo inscreve o mundo e este, representado, é a projecção dos poderes daquele. Reflexão do mundo no corpo que, por sua vez, se acentua e se sintetiza no olhar que desvela sem ser visto o que, da tela, o olha sem saber. Ora, no auto-retrato, o olhar vê-se vendo-se (em abismo): como se aí culminasse a tendência implícita em toda a pintura para ver e se expor, em latência permanente num olhar-corpo voyeurista-exibicionista. (É isto, aliás, o que nos diz Duchamp em La mariée mise à nu par ses célibataires, même.)
Aparentemente, na auto-representação o outro deixa de existir; o outro é o pintor mesmo. Quando ele se representa, a reflexão do olhar fecha-se sobre si. (...) No auto-retrato nada mais foge ao olhar: a imagem atrai e reflecte o olhar que a olha; e porque tudo no olhar do pintor se concentra na sua própria imagem, esta absorve tudo o que a rodeia, e reenvia-o, centrando ainda mais (pela composição que aprisiona) os elementos da representação. (pp. 49-50)
(...)
O pintor que se auto-representa dá um passo para lá da representação e da pintura: dir-se-ia que ele quer captar imediatamente a sua relação com a pintura, como se pudesse, ou fingisse poder, dela fazer a economia. Por isso o auto-retrato é sempre o inverso de um buraco negro (como o pode ser um rosto real) que absorve a vida, sempre mais do que a simples reprodução mimética de um rosto outro (retrato). (p. 51)
GIL, José (2005), «Sem Título» - Escritos sobre Arte e Artistas, Lisboa, Relógio D`Água (pp.22-51).