FRANCISCO DE HOLANDA
DO TIRAR POLO NATURAL
Como Poucos Podem Fazer Perfeição
Fernando - O primeiro preceito que eu no tirar ao natural poria, é que o pintor excelente (se lhe quereis chamar pintor) que pinte muito poucas pessoas, e estas muito singularmente escolhidas, pondo mais a perfeição e o cuidado no primor da pouca obra, que no número da muita.
E posto que alguns forasteiros pintores parece que tiram polo natural grande soma de pessoas, todavia estimando bem e sentindo o fundamento de suas obras, não merecem serem vistas; e o que é muito de espantar que de quanta gente vemos nesta larga redondeza do mundo, não são mais que dois ou três os famosos homens que mereçam e saibam bem fazer o grande ofício do tirar ao natural, como se deve de fazer, por que graça é de cima concedida a mui poucos dos mortais.
(...)
Fernando - Torno a dizer que o grande ofício de imitar ao sumo Deus nas suas obras, e o mandar à memória um príncipe ou pessoa digna de merecimento (que estes sós são os que merecem ser ao natural terladados, e mostrados polo mundo), se não deve de fiar senão de um eminente e singular desenhador.
(...)
Fernando - Porque não somente os príncipes e reis têm merecimento de serem ao natural pintados, mas ainda deles poucos foram os que mereceram ser ao natural pintados, para ficarem em memória à posteridade e tempo. (p.14)
(...)
Fernando - (...). E também tem entre estes lugar qualquer homem famoso em armas, ou em desenho, ou em letras, ou em singular liberalidade ou virtude, e não algum outro qualquer homem. E assim mesmo é coisa lícita terem os filhos a memória de seu pai, mãe e avós, tirados ao natural para sempre os terem presentes, para acrescentamento de sua virtude e para sua consolação e dos seus, imitando quanto puderem seus antecessores na bondade e com eles aumentando sua passada genelosia. (p.15)
Como Nenhuma Obra Perfeita Deve De Ser Vista
Fernando - Espanto-me de o não alcançardes já. Convém-lhe de estar só para na sua obra estar todo, mais junto e pronto, e não ter o pensamento derramado nos olhos dos muitos que o estão olhando e para estar consigo mais recolhido e solitário.
Quero-vos ainda dizer mais: que se pudera ser estar o mesmo desenhador só, sem ninguém, e ter na fantasia e memória a pessoa que há-de pôr em obra e pintar, crêde que muito melhor seria que tê-la diante dos olhos visíveis se a visse com os invisíveis, quanto mais estar contentando a quantos indiscretos há numa corte e tê-los todos presentes, porque ao menos não lhe acontecesse querer pintar ao senhor diante dos seus criados, não os pintasse a eles todos no rosto dele, querendo pintar a ele só, que seria coisa forte. (pp.17-18)
Fernando - (...) quando a tal obra houvesse de mostrar-se para nela tomar conselho (ao mais pelo meu) ela se não deve mostrar senão a um só eminente e avisado mestre de pintura, o qual deve além disto ser mui arrefecido de inveja e de suspeita e mui experimentado nos tais primores e mui verdadeiro. A esse tal bem se pode mostrar por amizade uma obra e dele tomar algum parecer e conselho e alguma parte; e estou em afirmar que ainda os olhos daquele mesmo mestre podem impedir e atalhar muita parte da perfeição e intento que devera ter a tal obra ante ser vista; e podem muitas vezes mais danar, que dar proveito, porque ainda a imaginação inteira do que faz a obra (se é excelente homem) estando toda junta e recolhida em si mesma e aconselhada consigo mesma no intento que tem cuidado e no fim em que depara, mui facilmente (se lha desviam e apartam), muitas vezes se desmancha e perde. (p.19)
HOLANDA, Francisco de (1984), Do Tirar Polo Natural, Livros Horizonte (pp.14-19) [1ª ed. 1892].