ROBERT WALSER
“OS PENSAMENTOS DE CÉZANNE”
Se quiséssemos, poderíamos constatar uma falta de corporalidade; trata-se porém de um entendimento particular, do resultado de se ter ocupado, talvez ao longo de muitos anos, com determinado objecto. Aquele de quem falo olha, por exemplo, longamente estes frutos, que tanto são banais quanto estranhos: concentra-se na sua contemplação, na membrana que os envolve totalmente, no incrível sossego do seu ser, na sua aparência sorridente, pomposa, bondosa. "Não é quase trágico", terá dito a si mesmo, "que não possam estar conscientes da sua utilidade e da sua beleza?" Gostaria de lhes ter comunicado, transmitido, incutido a capacidade para pensar, lamentando a falta de capacidade que tinham para se conceberem a si mesmos. Creio mesmo que chegou ao ponto de se queixar, tendo de seguida ganho uma certa compaixão consigo próprio, sem entender, durante muito tempo, porquê.
Até esta toalha de mesa tem a sua alma própria, imaginava ele, desejando que assim fosse, de modo que qualquer desejo deste tipo se concretizasse imediatamente. Ali estava, pálida, branca, misteriosamente limpa: aproximava-se dela e acrescentava-lhe dobras. Era incrível como a toalha se deixava moldar, totalmente entregue ao critério daquele que lhe mexia! É até possível que se lhe tenha dirigido como imperativo "Torna-te viva". Em tudo isto, não devemos esquecer que tinha o tempo necessário para se dedicar a estranhos esboços, exercícios, provas lúdicas, investigações. Tinha a sorte de ter uma mulher a quem podia entregar, com toda a calma, as preocupações do quotidiano, a economia etc. Parece ter-se relacionado com a mulher como com uma flor grande e bela, que nunca deixa escapar do seu cálice, dos seus lábios, um lamento. Esta flor, ó, ela guardava tudo aquilo que não apreciava nele para si própria; era, segundo creio, um verdadeiro milagre da serenidade; a sua paciência era comparável às extravagâncias do marido, a sua prudência à de um anjo. Estas extravagâncias eram, para ela, como um palácio mágico, que deixava em paz, que aprovava, no qual nunca entrava, nem através da mais breve alusão, que menosprezava, mas simultaneamente respeitava. Diria sobre isto a si mesma: "São coisas que não me dizem respeito." Sem dúvida que possuía, pelo facto de não tocar nas "ocupações escolares" do seu companheiro de vida e ainda que os seus esforços lhe parecessem um equívoco, um certo sentido de humanidade, isto é, gosto. Ele passava horas, dias, a tornar o evidente incompreensível, a encontrar para lugares
Paul Cézanne, Madame Cézanne com vestido vermelho (1888-90)
comuns um fundamento inexplicável. Como tempo, ganhou uma percepção apurada, decorrente do múltiplo vaguear exacto pelos limites, que se tornaram para ele algo de misterioso. Durante toda a sua pacata vida travou uma batalha silenciosa e, sentimo-nos tentados a dizer, muito nobre, no sentido de tornar o limite acidentado, se assim o podemos dizer.
A sua ideia é que um território acidentado é mais vasto, mais rico.
Segundo consta, a sua mulher tentou, por diversas vezes, convencê-lo a retirar-se desta batalha que possuía algo de quase ridículo e a ir viajar.
Ele respondia: "Com muito prazer! Posso pedir-te que me prepares uma mala com tudo o que necessito?"
Ela acedia ao pedido, mas ele não viajava, ficava, andava novamente de volta dos limites dos corpos que representava, cuja imagem reproduzia, e ela pegava de novo naquilo que tinha arrumado, de forma tao cuidadosa quanta pensativa, retirava-o do cesto ou da mala e tudo era de novo como antigamente, sendo constantemente renovado por este sonhador.
E de realçar a singularidade do facto de ele olhar para a sua mulher do mesmo modo que olhava para um fruto sobre a toalha de mesa. Os limites, os contornos da mulher eram para ele extremamente simples e simultaneamente complexos, assim como o eram nas flores, nos copos, nos pratos, nas facas, nos garfos, nas toalhas de mesa, nos frutos, nas chávenas e nas cafeteiras. Um pedaço de manteiga era para ele tão importante como o doce relevo do vestido da mulher. Estou consciente das minhas deficiências de expressão a este respeito, creio, no entanto, que me compreendem, apesar da incompletude destas reflexões, entre as quais se vislumbram focos de luz. Talvez até me compreendam melhor, mais profundamente, pese embora eu admita, neste caso, alguma superficialidade. Resumindo, ele pertencia ao género de criatura de atelier, que certamente poderá ser criticada do ponto de vista da família ou da pátria. Vemo-nos quase obrigados a crer que era um "asiático ". Não é a Ásia a pátria da arte, da espiritualidade, que constituem o mais alto luxo que podemos conceber? Se o tomássemos como um homem sem apetite estaríamos provavelmente enganados. Ele gostava tanto de comer frutos como de os estudar; considerava o fiambre tao gostoso quanto "magnífico" enquanto forma e colorido e "fenomenal" enquanto ocorrência. Se bebia vinho admirava o facto de o saborear, sem aqui o precisarmos de um modo verdadeiramente particular. O próprio vinho foi aliás objecto de representação. Criava flores no papel, de um modo que elas tremiam, rejubilavam e sorriam sobre o mesmo, com a vibração característica das plantas; preocupava-se como tecido das flores, com o espírito do segredo da dimensão incompreendida de uma criação particular.
Tudo o que compreendia agrupava-se e, se é que podemos falar de musicalidade na sua obra, esta resultava da riqueza das suas observações e do facto de aceitar que qualquer objecto se lhe revelasse na sua essência, de forma ainda mais evidente quando colocava grandes e pequenos no mesmo "templo".
O que observava tornava-se possuidor de múltiplos sentidos e o que criava olhava-o como se tivesse sido abençoado e ainda hoje nos olha assim.
Ter-se-á o direito de afirmar que deu uma grande utilidade à flexibilidade e à complacência das suas mãos, chegando quase a um estado de exaustão.
WALSER, Robert (2011), “Os Pensamentos do Cézanne” in Histórias de imagens, Lisboa, Cotovia.