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DIOGO MARTINS

“UM PACTO ÀS ESCURAS: DA AUTORREPRESENTAÇÃO EM ALANIS MORISSETTE”

       Do cadáver de Deus ainda se faz um luto penitencial (que é existencial), e a linguagem artística, no seu caráter multiforme de modelizar o mundo, parece estar ao serviço de restituir ao homem alguma da fé que este havia depositado, e depois sentido extinguir-se, na antiga transcendência ou metafísica, servindo-se dela para sublimar o presente sem a almofada do passado (mítico, histórico...). Parte dessa fé, tanto quanto é legítimo afirmá-lo, reabilita o sujeito nos múltiplos espelhos onde ainda consegue ver refletida a sua imagem, apesar de todas as nódoas e névoas que os possam recobrir (recorde-se que a psicose do sujeito (cf. Lacan, 1966: 89-97) devém a única verdade possível desde o seu nascimento, sendo precipitado no mundo como um corpo que já vem precocemente fragmentado, tateando a unidade de si numa sombra imaginária, ou seja, no seu reflexo no espelho).

 

       Deste modo, e face à condição teológica tragicamente órfã e desamparada do sujeito, a escrita autobiográfica ressuscita a figura do autor (continuamos, portanto, no plano da imagem), que Barthes celebremente matara num contexto associado à premência autotélica do texto sobre as leituras de cariz biografista. O autorretrato, pictórico ou literário, restitui-lhe uma certa “euidade” de si, re(in)veste o eu retratado de uma aura subjetiva (sem que isso recubra démarches de furor expressionista), alheia aos regimes legitimadores que conferem à arte o seu poder “museológico”, depois da segurança simbólica bebida das grandes meta-narrativas, segundo Lyotard, se ter simplesmente esvanecido na sua inoperância ontológica, encolhendo o que na ideologia parecia grande. Quando já nada extrínseco parece conseguir defini-lo, o sujeito procura autodefinir-se com o que sabe – mas também com o que desconhece, com a insolência pregnante de uma ignorância insuperável que, para citar duas metáforas antunianas, apenas permite ao leitor de (auto)biografias ficar “a par de uma casca, porque o acesso ao miolo é impossível e o conhecimento da intimidade nos está vedado” (Antunes, 2012: 12). Das duas vias – a da gnose e a da ignorância –, talvez a segunda tenha sido a mais profícua: um furar contínuo dessa casca desafiante.

 

       Supposed Former Infatuation Junkie, editado em 1998, figura hoje como um álbum musical sui generis, seja pelo seu sincretismo a nível dos registos pop, rock e indie, seja dentro da própria consistência técnico-compositiva e conceptual morissetteana, que com este lançamento discográfico não só comprometeu todo o histerismo mediático à volta de Jagged Little Pill, mas também consignou a sua assinatura pessoal enquanto artista “estranha” ao meio (tanto musical como político) que anos antes a acolhera, ensimes- mada no que realmente deseja exprimir e desinteressada de todos os satéli- tes (comerciais) extrínsecos a esse imperativo primordial, o escrever(-se).

 

       Nesse sentido, o booklet do segundo álbum surpreende e intimida o expectável ouvinte de música, sobretudo porque, visualmente, muitas das lyrics se apresentam como longas manchas grafémicas, com refrões alternativos no corpo da mesma canção, alguns dificilmente memorizáveis (quando não é o caso de nem existirem de todo), sujeitando o ouvinte a esforços de concentração sobre a natureza lisível e reflexiva da música, antes de se quedar numa simples audibilidade diletante que, por norma, facilita a receção de um texto emergente da ora vexada ora indemne pop culture (não fosse o epíteto ‘música comercial’ lido pela crítica mais conservadora, de Theodor W. Adorno a Roger Scruton, como algo de nefastamente demolidor, porque desgastado, acrítico e, pior, atraente e hipnotizante).

 

       À parte aquilo que possa estreitar os mais sensatos vaivéns de correspondências entre a escrita morissetteana e outros discursos (literário, filosófico, intermedial), o limbo dos “estudos literários” ou dos “estudos culturais”, com uma brecha por onde as designadas “poéticas do rock” possam respirar, permanecerá límbico: até que ponto será ou não justo considerar como falsa modéstia o facto de a instituição literária, enquanto linguagem normativa por excelência, celebrar a ruína e a famigerada decadência dos seus cultos, como o cânone de moldes bloomianos, promovendo colóquios, seminários e mesas redondas sobre uma morte que, pelo menos na prática, permanece bem viva sob outros meios de materialização e reprodução do literário? Américo Lindeza Diogo concretiza: “Serão as bazófias da juventude o heavy metal dos Faetontes de sempre? Será que a Vénus com suas ‘lácteas tetas’ e ‘roxos lírios’ shoot to thrill?” (Diogo, 2002/2005: 14).

 

       Enredando-se nos trâmites topológicos da autobiografia, cedo se depreende que a escrita morissetteana não gravita em torno de um sujeito estável, mas de um eu que se vê ao espelho e se apercebe de que também é visto, em sentido merleau-pontiano, ergo construído também pela alteridade, por uma inevitável reversibilidade do percurso fenomenológico da visão, em particular, e do corpo em toda a sua intensa, profusa e profunda estesiologia, em geral, corpo que se impõe figural e figurativamente numa hermenêutica das lyrics, pelo facto de o emissor dar rosto, voz e carne ao seu texto. Trata-se, portanto, de um ato performativo, se tomarmos a linguagem em contexto pragmático, como o que, neste estudo, serve de princípio estrutu- rante. O apagamento do sujeito, se de facto acontece, é apenas metafórico, porque nunca deixa de ser/estar encorpado, sob a espessura da casca antu- niana, desunhando aquele que diz eu. Por sua vez, se tomarmos em conta a interferência dos desígnios autobiográficos, mais irrepreensível se torna a afirmação barthesiana, segundo a qual “quanto mais ‘sincero’ sou, mais me torno interpretável” (Barthes, 2009: 148). 

 

 

MARTINS, Diogo (2012), “Um pacto às escuras: da autorrepresentação em Alanis Morissette”, Diacrítica, 26/3 (pp. 43-45).

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