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DANIEL TAVARES

“GAËTAN E HERBERTO HELDER: DO IMPERCETÍVEL”

       Quando José Gil refere que para desenhar é necessário “pôr-se em atitude” (Gil, 2005: 221), “dispondo-se à maneira de não receber senão certos estímulos” (idem), está a referir a necessidade de se cegar provisoriamente, de se tornar imperceptível aos próprios olhos de forma a poder mascarar-se, induzir-se em traço. É claro que esta cegueira proporciona à mão – o carrasco do rosto, diríamos – uma importância acrescida. O retratista sai de si, anula-se como Orfeu ou Perseu para ganhar uma dimensão quase meta-física que se inscreve para além dos próprios olhos, além do próprio corpo.

 

       O que julgamos ver quando olhamos para um retrato? Decifraremos nós o rosto do retratado ou antes um conjunto de traços, de “pequenas per- cepções”, de forças de que os traços estão fecundados. Forças que surgem não tanto do olho enquanto mediador entre objeto retratado e desenho, mas antes de uma certa independência da mão em relação ao olho. A mão acolhe em si o “devir-retrato” antes de o executar.

 

       Na mão, ou neste jogo de mãos, inscreve-se a arte de Gaëtan. Os seus trabalhos revelam a consciencialização que o artista contemporâneo possui sobre a impossibilidade retratística. Ao compor um autorretrato através da sua mão esquerda, não sendo esta a sua mão mais sagaz, o retratista apresenta aquilo a que Castro Caldas se referia ao falar da “incongruência, da implausibilidade do empreendimento que com eles [retratos] se inicia”. A obra de Gaëtan apresenta-se assim como uma negação taxativa do que poderia ser entendido como a essência do autorretrato: a semelhança. O que artista parece querer veicular através da sua obra é precisamente um ponto intermédio entre a intenção retratística e a tensão que surge do exercício da mão esquerda. Destas duas forças nascerá o autorretrato que é assim forjado em “qualquer coisa de obscuro, que se passa nos bastidores, entre máscaras.” (Caldas, 2008: 71).

 

       Este ofício de “contra mão” pode ser visto como um lavor mais umbroso, menos claro e limpo do que um retrato executado pela mão “naturalmente competente”. O esforço feito neste caso pelo artista para chegar ao traço é muito mais visceral do que a normal conduta do corpo perante o desafio do retrato. O path(os) que obriga uma serventia do corpo perante o traço sem que a mão deixe escapar o traço do traço pensado. Há um caminho a percorrer entre a “intenção” retratística e o retrato que se faz com uma “intensão” sinistra. O retrato apresenta-se como um não-objeto, como uma “transcendência pura, sem máscara ôntica” e, como nota Merleau-Ponty, não há qualquer adição ao visível, o visível já comporta em si o invisível. Aqui, parece claro que a questão da semelhança é arredada da esfera retratística, já que o retrato não aprisiona, mas apresenta-se como um lugar de abertura.

 

 

TAVARES, Daniel (2012), “Gaëtan e Herberto Helder: do impercetível”, Diacrítica, 26/3 (pp. 43-45).

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