VASCO GRAÇA MOURA
“O RETRATO DE FRANCISCA MATROCO”
no outono de 1879, em vila viçosa,
mais exactamente a dezoito de outubro,
henrique pousão desenhou o retrato de francisca matroco,
sua prima, talvez já sua namorada.
deve tê-la feito sentar no vão de uma janela
para que ao chegar a luz à sua pele
o sol de outono pousasse mais moroso
sobre o lado direito e as sombras fossem leves,
levemente esfumadas, luminosas,
na sua face esquerda. os olhos dela captavam
a transparência da tarde, isto enquanto o fitava,
quase séria mas doce, numa pose benigna
que continha o sorriso. nem podemos dizer
da melancolia alentejana a espelhar
no seu rosto um horizonte manso e ondulante, nem
que ela estivesse triste. “donaire” era a palavra,
antigamente, que lhe assentava bem,
com o pequeno véu mosqueado no alto da cabeça
e os cabelos curtos tombando sobre a testa,
em frágil desalinho. pousão, se já tivesse
andado por itália, pensaria «tanto gentile e
tanto onesta», enquanto os cinzas ténues
lhe saíam da mão e sugeriam o nariz recto e modelavam
a firmeza do queixo e davam um toque natural
às sobrancelhas quase interrogativas e
rematavam num laço o frouxo das rendas e dos
tafetás em torno do pescoço. pousão tinha
vinte anos e francisca andaria pela mesma idade:
vê-se que estava pronta a dedicar-lhe a sua vida
mesmo que imaginasse a morte dele dali a cinco,
mas não era provável que a doença
já ensombrasse aquele amor discreto,
em vila viçosa, para mais numa casa que era
da madrinha de pousão, entre os resposteiros afastados
em que o ar se enrolava, escuros móveis brunidos,
credências, daguerreótipos da família
e um jarrão de cravinas sob o espelho grande
que prolongava as pranchas do sobrado.
«o meu par é o mais lindo
que anda aqui na roda inteira», terá ele
trauteado mentalmente, misturando oliveiras ao desenho
naquela hora burguesmente lírica, na pacatez
dessa inquieta alegria em que mostrava
a segurança dos seus dotes e o retrato
ia ficando parecido no seu jogo de penumbras
imponderáveis, como um milagre fotográfico
entre perfumes vindos lá de fora e o bem-estar
do recanto. francisca aguardava, talvez submissa
mas ferozmente certa desse resultado.
era um momento do lápis em que aflorava a sua vida
e se concentrava no devagar da tarde,
depois de os olhos de pousão intensamente
a percorrerem, interrogando-a para que ela
não duvidasse nunca dos amores no outono,
nem dos silêncios de uma vila no alentejo,
nem da luz, nem das sombras, nem da realidade.
MOURA, Vasco Graça (1998), “o retrato de francisca matroco” in o retrato de francisca matroco e outros poemas, Lisboa, Quetzal.
Henrique Pousão, Retrato de Francisca Matroco (1879)