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JOSÉ MATTOSO

“AS MÁSCARAS. O ROSTO DA VIDA E DA MORTE”

       De facto, a máscara oculta o rosto sob uma forma imóvel. Retira-lhe, portanto, a vida, e, com ela, retira-lhe também, aparentemente, a expressividade e o sentido. É, por assim dizer, a própria antítese da face humana.

 

       Mas se examinarmos com atenção o uso universal da máscara, e se repararmos para que serve, sobretudo nas sociedades ditas «primitivas» e nas sociedades tradicionais, tem de se reconhecer, creio eu, que a máscara, longe de ocultar, revela; que ela retira a expressão pessoal do rosto, mas manifesta aquilo que na vida quotidiana não se pode ver; que ela serve, enfim, para descobrir um certo sentido do rostoque está para além das aparências: aquele sentido que a face viva e individual faz esquecer e só aparece com a morte.

 

       De facto, a máscara, ao imobilizar o rosto, torna-o semelhante ao do cadáver. Talvez a sua função seja, justamente a de mostrar a face dos mortos que continuam vivos na memória de quem os conheceu e amou, e sem cuja força e presença é mais difícil viver. Ou, pelo contrário, mostrar a face dos que também continuam vivos, mas, porque, mesmo depois de mortos, não se consegue apagar da memória a lembrança do que os fez odiar ou temer. Amados, odiamos ou temidos, podem então aparecer, apesar de invisíveis, despojados dos seus aspetos acidentais e caducos, e reduzidos ao seu sentido essencial. A máscara imóvel no rosto de quem fala, se move, gesticula ou dança é a representação do morto que continua a viver e que, por isso, perturba, ameaça, ensina ou protege os vivos.

 

(...)

 

       A sociedade moderna essa função da máscara. Só preservou o seu uso lúdico ou ilusório. Mas, quando se examinam as práticas ditas «primitivas» ou tradicionais, as suas modalidades e o seu sentido, tornam-se verdadeiramente fascinantes, porque com elas descobrimos aquilo a que poderia chamar o sentido universal do rosto: aquele sentido que surge quando a morte do indivíduo traz à superfície a manifestação daquilo que é verdadeiramente vital para toda a humanidade.

 

(...)

 

       Começarei por recordar o uso romano das imagines, isto é, das máscaras de cera que se faziam imediatamente depois da mortede uma personalidadeque tinha desempenhado cargos públicos prórpios dos nobiles. Eram feitas sobre o próprio rosto do defunto, e, por isso, tinham impressos todos os seus traços individuais. A família guardava-as fechadas em pequenos armários, donde as tirava para figurarem nos funerais dos seus descendentes, durante os quais eram usadas por atores (histriões) com as vestes distintivas dos cargos desempenhados em vida. Nessa ocasião, um orador fazia o seu elogio fúnebre perante todos os assistentes. Segundo as conceções de então, a cerimónio como que tornava presentes os antepessados, e dava vida àquilo que neles era eterno ou perfeito, e que devia permanecer como um valor coletivo. A máscara, ou imago, que representava a marca pessoal deixada na cera pelo antepassado e que perpetuava o seu rosto, fazia-o participar nos funerais de quem se ia reunir a ele, exprimia a sua relação permanente com os vivos, por meio da exaltação da sua glória eterna. Como é evidente, este ritual tinha por si mesmo uma forte eficácio como elo de coesão para o grupo dos descendentes (F. Dupont, 1985). Embora predomine nele o aspeto cívico, está ligado à crença no poder protetor dos antepassados sobre os seus descendentes. A proteção aparecia então como um contradom para retribuir o reconhecimento e a evocação da glória dos mortos. Assim, o vínculo criado pelo ritual não envolvia só os vivos mas também os mortos. A manutenção deste elo garantia a prosperidade e a fecundidade do grupo, isto é, assegurava a sua prepetuação, apesar da morte sucessiva dos seus membros.

 

 

MATTOSO, José (2013), "As máscaras. O rosto da vida e da morte", in Poderes Invisíveis. O imaginário medieval, Lisboa, Temas & Debates / Círculo de Leitores, (pp. 31-45).

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